quarta-feira, 9 de março de 2011

UMA BRASILEIRA NO PÍNCARO DA GLÓRIA

Othon Ávila Amaral

O momento é oportuno, é próprio, é pertinente. Estamos recordando que se comemorou ontem e talvez se prolongue pelo mês em curso o Dia Internacional da Mulher. Nossa Academia, como de hábito, revestida de sua humilde simplicidade, é deveras assaz, para inscrever na sua história, o desvelo que tem por aquelas e por aqueles que pela estatura e importância de suas vidas nos legaram exemplos sobejantes.

Março marca logo nos seus primeiros dias a despedida de uma mulher que, pela graça de Deus viveu 102 anos ficando bem próxima dos 103. Filha de um português e de uma alemã não sei de quem ela herdou tantas virtudes, tanta dignidade, tanta nobreza, tanta candura, que a tornaram merecedora de homenagens que, por certo, a perpetuaram entre as mais notáveis brasileiras de todos os tempos e elevando-a ao mesmo patamar de outras mulheres de nosso mundo contemporâneo. Pelo que fez poucas, pouquíssimas, antes dela fizeram igual; e pelo que fez é possível até mesmo ultrapassá-la se a tomarem como espelho, como modelo, como paradigma.

Estou tratando de Aracy Moebius de Carvalho, que nasceu no dia 20 de abril de 1908, na cidade de Rio Negro, Paraná. Casou-se com Johannes Edward Ludvig Tess. O casal teve um único filho, Eduardo. O casamento durou cerca de cinco anos. Com a chamada “separação amigável”, ou desquite, cada um tomou seu rumo. Ela que falava três línguas - inglês, francês e alemão - resolveu ir para a Alemanha e morar com sua tia. Lá chegando conseguiu mercê de seu preparo lingüístico emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Foi José Carlos de Macedo Soares, Ministro das Relações Exteriores, quem a indicou para a função em 1935.

Sua tarefa era das mais complicadas. Cabia a ela como chefe de seção o encaminhamento dos passaportes para reconhecimento. Em novembro de 1938, exatamente no dia 9, aconteceu a celebérrima “Noite de Cristal”. Foi o sinal para o início em grande escala do extermínio e prisão dos indesejados - judeus, ciganos, negros, homossexuais, religiosos. Havia uma conspiração, havia um sentimento preconceituoso, principalmente contra o povo judeu. Naquela noite os nazistas invadiram casas e sinagogas e mataram cerca de 90 pessoas. Era o princípio de tragédias maiores. Surgiram os campos de concentração. O primeiro foi o de Dachau a 20 quilômetros de Munique onde morreram 43 mil pessoas.

No Brasil o ditador Getúlio Vargas editava a Circular Secreta nº 1.127 de 7 de junho de 1937 que restringia a entrada de judeus. Um ano antes deportou para a Alemanha Olga Benário, grávida de Anita Leocádia, esposa de Luiz Carlos Prestes. Na mesma época foi criado o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, que cerceava a livre manifestação dos meios de comunicação existentes, jornais, revistas, emissoras de rádio.

Aracy de Carvalho estava em pleno exercício de suas atividades. Foi nessa ocasião que chegou a Hamburgo o médico e diplomata João Guimarães Rosa. Respondia pelo consulado brasileiro Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. Começaram a surgir os pedidos de visto de passaportes de judeus. A cidade de Hamburgo era estratégica, e por ser porto dos mais importantes, tinha muitos consulados. E cabia a ela, Aracy, levar ao cônsul os documentos que necessitavam de seu visto. Entre eles o reconhecimento e as autorizações dos passaportes. E como atender a tantas famílias judaicas que desejavam deixar a Alemanha?

Uma experiência muito comovente aconteceu com Maria Margareth, alemã de origem judaica, que sentindo as perseguições que começaram a alcançar seu marido, o dentista Hugo Levy, escondido já há dois meses, procurou o consulado brasileiro. Em contato com Aracy de Carvalho a brasileira colocou a carro do serviço diplomático a disposição deles e conseguiu embarcá-los, resguardando até mesmo as jóias do casal. Eles chegaram a São Paulo em 1938. Durante a guerra Maria Margareth perdeu mais de vinte familiares na Polônia inclusive sua própria mãe.

Foi muito problemática a estratégia de Aracy de Carvalho para conseguir passaporte para duas ou três centenas de estrangeiros, principalmente judeus para deixaram a Alemanha. Todos os documentos os envolvendo chegavam assinalados com a letra “J” em vermelho. Também precisavam de atestados de residência. E foi um alemão, nada simpático ao regime hitlerista, o auxiliar de Aracy para equacionar alguns desses problemas, inclusive os de residência.

Para que o cônsul Joaquim Antônio não observasse nada ela colocava os passaportes envolvendo os “indesejados” misturados com outros documentos e eram os mesmos vistoriados pelo cônsul sem uma leitura cuidadosa. Simplesmente ele estava acostumado a trabalhar com Aracy e bastava sua confiança nela para confirmar o que já havia feito. Graças a Aracy de Carvalho dezenas de judeus foram salvos dos campos de concentração! Aracy corria grande perigo, pois como funcionária não desfrutava de imunidades diplomáticas.

Com a chegada de João Guimarães Rosa, que foi cônsul adjunto, outro descasado, pai de duas filhas, Vilma e Agnes, Aracy encontrou alguém com quem poderia compartilhar sua “amizade combatente”, isto é, “atuava a favor do amigo sem que este lhe pedisse ajuda”. Joãozinho, como ela passou a chamá-lo, aderiu ao plano já em execução. Interessante que pesquisadoras brasileiras descobriram mais recentemente que João Guimarães Rosa chegou a ser denunciado por suas posições anti-nazistas. Elas “encontraram queixas enviadas pelas autoridades alemãs ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro, dando conta que o então cônsul João Guimarães Rosa fizera declarações contrárias ao regime”.

Nosso consulado funcionou até agosto de 1942 quando submarinos alemães torpedearam o navio brasileiro Baependi. No dia 31 de agosto o Brasil declarou guerra à Alemanha. Nossos diplomatas, entre eles Aracy e Guimarães Rosa, ficaram sob custódia em Baden-Baden durante quatro meses e depois foram trocados por diplomatas do regime hitlerista. O casamento com o diplomata brasileiro aconteceu por procuração no México.

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa cultivou ao longo de sua existência o amor aqueles que foram alvo de perseguições em regimes autoritários, ditatoriais. Em 1964 o regime militar brasileiro andou a busca de intelectuais que se opunham ao golpe contra João Goulart, então Presidente do Brasil. Franklin de Oliveira, jornalista e crítico literário, radicado no Rio, era um dos visados. O casal tinha grande amizade por ele e quis escondê-lo. Franklin narra a experiência no prefácio da edição de Grande Sertão: Veredas, de 1988: “Em 1964, quando começou a caça às bruxas, quis que fosse me asilar na casa dele. Recusei: poderia comprometê-lo e eu não tinha esse direito. Só quando viu que não me demoveria da minha decisão, organizou uma lista de embaixadas nas quais eu pudesse buscar o direito de asilo. Rosa praticava aquilo que os alemães chamam de ‘amizade combatente’. Atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda.E fazia tudo mineiramente; em silêncio”.

Em 1968, por ocasião do Ato Institucional n° 5, o compositor e cantor Geraldo Vandré também foi procurado pelos militares por causa da canção “Prá não dizer que não falei de flores”. Ficou ele cerca de três meses escondido no apartamento de Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, já então viúva do escritor de Cordisburgo. Da janela ele e o filho dela observavam o movimento dos militares no Forte de Copacabana. Asilado no Chile ele teve oportunidade de escrever um poema no qual manifesta sua gratidão a tão notável mulher:

“A graça já se fez, amiga, / E não vai se perder. / Só falta que eu bendiga / e vou me preparar para cumprir / a missão de agradecer / além do verso e da palavra / Para tanto a poesia / tem muito que crescer. / O tempo eu não digo / porque me engano e vou desmerecer / garantido é que hoje sigo / mais seguro e mais forte / porque vais comigo / e mais posso fazer. / Porém além do verso e da palavra / Tem de ser / e ainda não sei quando / irei bendizer / da graça que foi tanta / de te conhecer”.

A ela, agradecido, Geraldo Vandré dedicou o poema acima em livro lançado no Chile, em 1973, e até hoje inédito no Brasil.

Aracy de Carvalho está entre os “Heróis da Humanidade”. Menciono alguns que inscreveram seus nomes na preservação do povo judeu: Luís Martins de Souza Dantas (1876-1954); Aristides de Souza Mendes (1885-1954); Oskar Schindler (1908-1974).

Aracy de Carvalho morreu, vítima do mal de Alzheimer, nas primeiras horas do dia 3 de março de 2011 com 102 anos de idade. No dia 20 de abril completaria 103 anos. Sua protegida, Maria Margareth Bertel Levy, morreu no dia 21 de fevereiro também com 102 anos. Foi uma amizade que começou em Hamburgo e terminou em São Paulo quando ambas nos deixaram com mais de um século de vida. A brasileira foi chamada pelo judeus a quem amparou de “O anjo de Hamburgo”.

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, em 1982, teve o seu nome no Jardim dos “Justos nas Nações”, (Yad Vashem), no Museu do Holocausto, em Jerusalém e também no Museu do Holocausto em Washington. Foi o reconhecimento do povo judeu a única mulher que, entre 18 diplomatas, mereceu tal honraria. É bom lembrar que o diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas também desfrutou de tal homenagem. “Aracy foi homenageada com o nome de um bosque do Keren Kayemet nas cercanias da cidade sagrada. Ela mesma inaugurou a placa comemorativa com um discurso em 1985 quando fez sua última viagem internacional”.

Quando João Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão: Veredas, dedicou, ou melhor deu o livro, para sua querida companheira com a seguinte mensagem: “A Aracy, minha mulher Ara, pertence este livro”. Ele morreu em 19 de novembro de 1967, três dias depois de ser empossado na Academia Brasileira de Letras, na cadeira n° 2, cujo patrono foi Coelho Neto e que teve depois João Neves da Fontoura. Ela o sobreviveu até 2011. “Com o tempo os amigos foram morrendo um a um. E Aracy foi se apagando”. Aracy enfrentou três regimes autocratas, ditatoriais: o nazismo, o Estado Novo de Getúlio Vargas e a Revolução de 1964 no Brasil.

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